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22.4.16

Um poema: "A nação impítima"


o país impítima
governado por josef k
fica a meio caminho da gália
bem próximo de macondo
faz fronteira com pasárgada

o estado impítima 
do ministro senhor meursault esperando godot
da república indecisa entre sócrates e platão 
do reino ansiando por quixotes românticos
do asteroide b612 do pequeno príncipe

a cidade impítima
das dúvidas de macabéa
das incertezas de hamlet
se aconselha com maquiavel
consultor de seus inimigos

o bairro impítima
empresta trechos truncados de hegel e engels
compra certezas à vista pela tv
vende gritos no atacado e varejo
confunde mala, lama e alma

a vila impítima
assistida por uma assembleia de judas
por um senado de judas
por um tribunal de judas
em seus palácios, edifícios, torres de babel

a rua impítima
a casa impítima
o cômodo impítima - 
ao espelho: a vítima

18.4.16

Poema: "Quem?"


quem me salvará do meu salvador?
quem me salvará do meu salvador?
quem me salvará de um amor que não amo?
quem me salvará de uma dor que não me dói?
quem me salvará de uma paz que não me acalma?
quem?
quem me livrará da culpa que não carrego?
quem me dará pão para a fome que não tenho?
quem dirá sim ao meu sim? não dirá não ao meu não?
quem dirá sim ao meu não? quem dirá não ao meu sim?
quem me libertará da liberdade que carrego?
quem me encerrará na prisão dos justos?
quem me carregará nas vitórias que não comemoro?
quem me enxotará pelas derrotas que não professo?
quem?
quem me amará acima do amor?
quem me odiará com mais ódio?
quem provocará a minha ira sonâmbula?
quem terá o meu afago?
quem me honrará? alguém?
quem em trairá? quantos?
quem se salva? tem?
quem me ameaça? vem?
quem irá abraçar os meus braços abertos?
quem irá beijar minhas palavras despertas?
quem me esquecerá diante de meus olhos?
quem me lembrará sem nunca te me visto?
quem não me reconhecerá nas fotos?
quem escarrará no meu rosto?
quem fechará meu caixão?
quem soprará minhas cinzas?
quem?
quem me sacrificará?
quem me crucificará?
quem me salvará dos que querem me salvar?
quem? quando? como? por quê? quantos?

EF - 18/04/2016

17.4.16

Resenha - livro "A Puta" (Márcia Barbiéri)

A obra e sua autora: "diálogo intermitente, diálogo íntimo..." (citação da foto no fim do texto)

    À primeira leitura, “A Puta”, de Márcia Barbiéri, tal qual seu livro anterior, “Mosaico de Rancores”, parece uma viagem lisérgica e redemoínica em torno de profundos abismos existenciais. Autora fecunda, que dialoga enfaticamente com as camadas interiores que estão fadadas pelas circunstâncias a ficar no fosso escuro das sensações, Barbiéri faz incursões algo temerárias para as almas monocromáticas desse século recém-inaugurado que dialoga com a vanguarda da mesma forma com que se relaciona com a idade média.
    Uma meditação mais demorada, contudo, vai permitir interpretar sua sintaxe como um vasculhamento em torno do eu, uma afirmação (mais que isso, uma intimidação) do sujeito diante de si, seja pelo exercício retórico, seja pela autoanálise, seja pelas compreensões sensíveis que o corpo faz em seu flerte com os abismos da linguagem, da vida, de Gaia. 
     Sua obra é um diálogo intermitente, diálogo íntimo entre as variedades de línguas que se encontram antes, durante e - principalmente - depois do prazer. Da fruição. Do gozo. “Pois eu digo, minha querida, puta e mãe ninguém esquece” (p. 117). E não existe mancha mais escura do que nódoa do amor” (p.47). Mais emblemático nesse diálogo com a (o) outra (a), é perceber, na morfologia das palavras, o ímpeto de quem está em frêmito, desajuizado, na visceralidade orgástica. A plausibilidade dessa observação pode ser talvez melhor entendida quando notamos que as 132 páginas que compreendem o enredo estão dispostas num tomo único, como um frenesi incontrolável. 
     Pois a língua, assim como o sono pós-coito, assim como o sonho dentro do sono, assim como o instinto animal do ser em contenda com a civilidade, é insaciável. Nisso se rivalizam os contrários: o sono, por exemplo, anseia a sua meditação em desprogressão, enquanto a língua - extenuada de seus labores: morder, soletrar, chupar, sorver, gemer -  quer unicamente, exclusivamente, demoradamente bailar. “Tenho ouvido tantos discursos bonitos, mas eles nunca estão em sincronia com as ações” (p. 79)”.
     Barbiéri se faz de psicóloga, ombro-amigo, ouvidora, para entreter/iludir quem a lê desarmado de atenção, mas o que se revela é uma aparelho de gravação. Gravação e reprodução de todos os temporais e calmarias que ocupam a cabeça da puta que, verdade seja descortinada aqui, todos nós somas, somos. 

Serviço:
livro: A Puta
autora: Márcia Barbiéri
144 pág. - Editora Terracota - 2015

foto:  https://www.google.com.br/search?q=marcia+barbieri+a+puta&biw=1024&bih=667&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwiwguaek5fMAhUKI5AKHVnwBRoQ_AUICCgD#imgrc=V5LX9SvDkbI7FM%3A